01.
De que outro lugar sairiam seus desenhos? Onde colheria suas paisagens? Da memória, quem sabe? São talvez haikais visuais, formas concisas de poesia onde nenhum excesso pode ser admitido? Na obra dessa artista menos não é mais, menos é o suficiente. Daí sua escala. Os desenhos de Hirata remetem a um minimalismo conseguido a força de um pensamento solidamente constituído sob os desígnios de um projeto gráfico. Sua linha, processo de elaboração sutil da vida, é milimetricamente trabalhada, precisa. A artista contradiz o alvoroço urbano com delicadeza. Frente ao mal estar da cidade que nos engole, introduz um tempo/espaço novo, de espera e observação atenta. A leveza como forma de combate.
Texto crítico da mostra Risco #2 Paisagem 28.08.2012
02.
Silêncio (I)
O exercício da crítica exige uma isenção de caráter ambíguo. Sugere um afastamento entre crítico e objeto criticado – distância que aponta para uma imparcialidade desejável e mesmo necessária. Mas a crítica implica, muitas vezes, em uma eleição, e esta, não é isenta de algum tipo de afeição, decorrendo daí o caráter ambivalente da relação entre o crítico e a obra criticada.
Esta prática enseja a dialética numa relação tencionada por pressupostos éticos e estéticos nascidos do embate entre a arte, seu meio e o universo social do qual elas emergem (o exercício da critica e a obra de arte). O afeto a que me referi se estabelece no contato de quem se aproxima da obra, e a experiência, de que sou devedor, trouxe-me a este território onde o espanto do primeiro encontro é fundador epidérmico de uma série de trocas estabelecidas a partir daí.
Na contemporaneidade, certo meandro do universo da arte impõe a novidade como condição inerente à arte, intrinsecamente ligada à idéia do objeto de arte. Mas essa “idéia” novidade, deriva mais de urgências surgidas às vezes a revelia da artista, de modo que, mesmo não sendo parte do projeto dele, é antes um predicado do mercado ou do sistema de arte no qual a produção está imersa.
O encontro com a obra pode também ganhar caráter epifaníaco quando, tocando certas fibras sensíveis, solicitam e aliciam nossos sentidos numa estranhamente inédita aventura intelectual e física (de novo aqui o cambio inextrincável) que sempre se renova.
O elemento do desenho que vertebra e erige o pensamento da Mariza Hirata, apresenta-se como uma edificação que faz da ausência um componente fundamental a essa construção. Espécie de arquitetura de vazios, essa opção acaba por criar paisagens onde o branco surge no papel potencializado e dota de força imagens cheias de silêncio. Linhas que similares a notas musicais vão criando pausas que revelam uma eloqüência até aí insuspeita.
Mas, na realidade, esse pretenso silêncio é sussurrante de falas, esta vida interior é uma linguagem interior.
Chama atenção nesses trabalhos a ausência de personagens humanos. Nas paisagens desabitadas vê-se apenas, e de maneira incidental, o resultado de seu trabalho, uma fração qualquer de uma paisagem urbana, um pedaço disso ou daquilo, a fração que informa sobre o todo. Como se o dente ilustrasse toda a boca; a boca, a cabeça, e...
Neste meu incipiente exercício as palavras ausência, silêncio, vazio e pausa têm seu uso franqueado, pois Mariza Hirata faz da economia de recursos plásticos uma norma. Seus trabalhos geralmente trazem a marca da sobriedade mesmo quando discorrem sobre sentimentos solenes e emoções derramadas, o que, aliás, é raro, e esta sobriedade também está explícita nos trabalhos cuja escala é pautada pela régua da delicadeza.
Caberia por tudo isso perguntar se sua condição de mulher e nipo-brasileira marca sua obra? Talvez a herança nipônica possa ser verificada na sua disciplina. Talvez. Mas parece também pouco justo creditar a essa herança e somente a ela suas maiores virtudes. De fato a feminilidade está presente, mas não como tema ou como militância explícita, mas como forma de acolher o mundo a sua volta.
Claudinei Roberto, 05.2010
03.
O vazio é um elemento que chama a atenção na exposição De passagem de Mariza Hirata. Não porque faltem obras, muito pelo contrário: são aproximadamente trinta desenhos, três plotagens, vinte e cinco fotografias, uma escultura e uma gravura mostrando a pesquisa da artista nas quatro salas expositivas do atelier Oço. Hirata, não obstante, têm o prodígio de, com todas as paredes ocupadas com pelo menos um trabalho, chamar a atenção para o vazio, silêncios nas palavras da artista. De maneira sutil a artista desloca imagens representativas em nosso cotidiano para lugar nenhum. São fotografias, desenhos, escultura e gravura compondo-se de lugares que olhamos e habitamos diariamente, mas que nunca notamos realmente: espaços públicos, casas de nosso entorno, nossa boca, entre outros lugares mais sombrios e leves dentro de nós. Lugares que esvaziamos ao torná-los lugares transitórios em nossas vidas.
Mariza Hirata trabalha com deslocamentos. Elege elementos rotineiros da vida de qualquer habitante citadino e os reproduz solitários em meio a paisagens vastas e vazias: em não-lugares como, a própria artista, nomeia uma das obras expostas. As linhas formadoras e moradoras do trabalho aceitam o deslocamento provocado. Um processo bastante utilizado nas artes. Tanto que a língua portuguesa forjou um termo para isso: metonímia, a parte tomada pelo todo. Podemos pensar então em um deslocamento que se dá em forma metonímica: em que a parte na obra não será o foco da representação, aquilo que foi trabalhado em imagem como esperamos naturalmente, e sim o pano de fundo, seu horizonte. Um horizonte representante do todo: tudo que está dentro e tudo o que está fora de cada observador. Horizontes em trânsito infinito, trancados dentro de todos e, portanto, impossíveis de se apreender.
O fundo não importa à artista. Porque tudo o que temos é uma parte: a imagem final. A artista olha para seu cotidiano, tão mundano quanto qualquer outro, e se inspira a representá-lo. Deixando lacunas para serem preenchidas pela imaginação de quem olha. Então podemos pensar em certo apelo nessas imagens para aplicarmos um estranhamento à vida: para que olhemos o mundo passageiro de nosso entorno como incompleto e o preenchamos mentalmente.
São escolhas talvez estranhas para uma artista que se apóia na figuração, no entanto são essas escolhas que chamam a atenção para os vazios implicados nas imagens. Há talvez apenas um lugar recorrente nessa exposição: o telhado, e vez por outra suas cercanias: um olhar para os céus (nublados ou ensolarados nunca saberemos) permeado por quinas e telhas. Onde se podem ver telhados em uma metrópole como São Paulo? Aqui e ali certamente, mas nunca é esse o foco de nosso olhar. Nunca os vemos realmente. Hirata não apenas vê como olha também para eles e nessas beiradas e quinas encontra estudos se não geométricos, geometrizantes para depois transformá-los em leituras claras de um olhar ativo e pensante: as obras que vemos.
É desse esforço em sintetizar-se no mínimo, em ser o mínimo, que podemos refletir sobre a importância da escala para esses trabalhos. As obras de Hirata sempre nascem em pequenas imagens, podendo eventualmente crescer, mas sua origem sempre parte de uma partícula pequena. As imagens são aparadas, recortadas e trabalhadas até alcançar seu argumento pictórico, nessa exposição como nome propõe, o trânsito. A sugestão de trânsito permea toda obra em De passagem: seja um transito sugerido pela proposição de deslocamentos do e no objeto focado, seja um transito exposto por cadernos preenchidos pela artista durante seus percursos diários através de São Paulo.
Paulo Gallina 15.05.2010
De que outro lugar sairiam seus desenhos? Onde colheria suas paisagens? Da memória, quem sabe? São talvez haikais visuais, formas concisas de poesia onde nenhum excesso pode ser admitido? Na obra dessa artista menos não é mais, menos é o suficiente. Daí sua escala. Os desenhos de Hirata remetem a um minimalismo conseguido a força de um pensamento solidamente constituído sob os desígnios de um projeto gráfico. Sua linha, processo de elaboração sutil da vida, é milimetricamente trabalhada, precisa. A artista contradiz o alvoroço urbano com delicadeza. Frente ao mal estar da cidade que nos engole, introduz um tempo/espaço novo, de espera e observação atenta. A leveza como forma de combate.
Texto crítico da mostra Risco #2 Paisagem 28.08.2012
02.
Silêncio (I)
O exercício da crítica exige uma isenção de caráter ambíguo. Sugere um afastamento entre crítico e objeto criticado – distância que aponta para uma imparcialidade desejável e mesmo necessária. Mas a crítica implica, muitas vezes, em uma eleição, e esta, não é isenta de algum tipo de afeição, decorrendo daí o caráter ambivalente da relação entre o crítico e a obra criticada.
Esta prática enseja a dialética numa relação tencionada por pressupostos éticos e estéticos nascidos do embate entre a arte, seu meio e o universo social do qual elas emergem (o exercício da critica e a obra de arte). O afeto a que me referi se estabelece no contato de quem se aproxima da obra, e a experiência, de que sou devedor, trouxe-me a este território onde o espanto do primeiro encontro é fundador epidérmico de uma série de trocas estabelecidas a partir daí.
Na contemporaneidade, certo meandro do universo da arte impõe a novidade como condição inerente à arte, intrinsecamente ligada à idéia do objeto de arte. Mas essa “idéia” novidade, deriva mais de urgências surgidas às vezes a revelia da artista, de modo que, mesmo não sendo parte do projeto dele, é antes um predicado do mercado ou do sistema de arte no qual a produção está imersa.
O encontro com a obra pode também ganhar caráter epifaníaco quando, tocando certas fibras sensíveis, solicitam e aliciam nossos sentidos numa estranhamente inédita aventura intelectual e física (de novo aqui o cambio inextrincável) que sempre se renova.
O elemento do desenho que vertebra e erige o pensamento da Mariza Hirata, apresenta-se como uma edificação que faz da ausência um componente fundamental a essa construção. Espécie de arquitetura de vazios, essa opção acaba por criar paisagens onde o branco surge no papel potencializado e dota de força imagens cheias de silêncio. Linhas que similares a notas musicais vão criando pausas que revelam uma eloqüência até aí insuspeita.
Mas, na realidade, esse pretenso silêncio é sussurrante de falas, esta vida interior é uma linguagem interior.
Chama atenção nesses trabalhos a ausência de personagens humanos. Nas paisagens desabitadas vê-se apenas, e de maneira incidental, o resultado de seu trabalho, uma fração qualquer de uma paisagem urbana, um pedaço disso ou daquilo, a fração que informa sobre o todo. Como se o dente ilustrasse toda a boca; a boca, a cabeça, e...
Neste meu incipiente exercício as palavras ausência, silêncio, vazio e pausa têm seu uso franqueado, pois Mariza Hirata faz da economia de recursos plásticos uma norma. Seus trabalhos geralmente trazem a marca da sobriedade mesmo quando discorrem sobre sentimentos solenes e emoções derramadas, o que, aliás, é raro, e esta sobriedade também está explícita nos trabalhos cuja escala é pautada pela régua da delicadeza.
Caberia por tudo isso perguntar se sua condição de mulher e nipo-brasileira marca sua obra? Talvez a herança nipônica possa ser verificada na sua disciplina. Talvez. Mas parece também pouco justo creditar a essa herança e somente a ela suas maiores virtudes. De fato a feminilidade está presente, mas não como tema ou como militância explícita, mas como forma de acolher o mundo a sua volta.
Claudinei Roberto, 05.2010
03.
O vazio é um elemento que chama a atenção na exposição De passagem de Mariza Hirata. Não porque faltem obras, muito pelo contrário: são aproximadamente trinta desenhos, três plotagens, vinte e cinco fotografias, uma escultura e uma gravura mostrando a pesquisa da artista nas quatro salas expositivas do atelier Oço. Hirata, não obstante, têm o prodígio de, com todas as paredes ocupadas com pelo menos um trabalho, chamar a atenção para o vazio, silêncios nas palavras da artista. De maneira sutil a artista desloca imagens representativas em nosso cotidiano para lugar nenhum. São fotografias, desenhos, escultura e gravura compondo-se de lugares que olhamos e habitamos diariamente, mas que nunca notamos realmente: espaços públicos, casas de nosso entorno, nossa boca, entre outros lugares mais sombrios e leves dentro de nós. Lugares que esvaziamos ao torná-los lugares transitórios em nossas vidas.
Mariza Hirata trabalha com deslocamentos. Elege elementos rotineiros da vida de qualquer habitante citadino e os reproduz solitários em meio a paisagens vastas e vazias: em não-lugares como, a própria artista, nomeia uma das obras expostas. As linhas formadoras e moradoras do trabalho aceitam o deslocamento provocado. Um processo bastante utilizado nas artes. Tanto que a língua portuguesa forjou um termo para isso: metonímia, a parte tomada pelo todo. Podemos pensar então em um deslocamento que se dá em forma metonímica: em que a parte na obra não será o foco da representação, aquilo que foi trabalhado em imagem como esperamos naturalmente, e sim o pano de fundo, seu horizonte. Um horizonte representante do todo: tudo que está dentro e tudo o que está fora de cada observador. Horizontes em trânsito infinito, trancados dentro de todos e, portanto, impossíveis de se apreender.
O fundo não importa à artista. Porque tudo o que temos é uma parte: a imagem final. A artista olha para seu cotidiano, tão mundano quanto qualquer outro, e se inspira a representá-lo. Deixando lacunas para serem preenchidas pela imaginação de quem olha. Então podemos pensar em certo apelo nessas imagens para aplicarmos um estranhamento à vida: para que olhemos o mundo passageiro de nosso entorno como incompleto e o preenchamos mentalmente.
São escolhas talvez estranhas para uma artista que se apóia na figuração, no entanto são essas escolhas que chamam a atenção para os vazios implicados nas imagens. Há talvez apenas um lugar recorrente nessa exposição: o telhado, e vez por outra suas cercanias: um olhar para os céus (nublados ou ensolarados nunca saberemos) permeado por quinas e telhas. Onde se podem ver telhados em uma metrópole como São Paulo? Aqui e ali certamente, mas nunca é esse o foco de nosso olhar. Nunca os vemos realmente. Hirata não apenas vê como olha também para eles e nessas beiradas e quinas encontra estudos se não geométricos, geometrizantes para depois transformá-los em leituras claras de um olhar ativo e pensante: as obras que vemos.
É desse esforço em sintetizar-se no mínimo, em ser o mínimo, que podemos refletir sobre a importância da escala para esses trabalhos. As obras de Hirata sempre nascem em pequenas imagens, podendo eventualmente crescer, mas sua origem sempre parte de uma partícula pequena. As imagens são aparadas, recortadas e trabalhadas até alcançar seu argumento pictórico, nessa exposição como nome propõe, o trânsito. A sugestão de trânsito permea toda obra em De passagem: seja um transito sugerido pela proposição de deslocamentos do e no objeto focado, seja um transito exposto por cadernos preenchidos pela artista durante seus percursos diários através de São Paulo.
Paulo Gallina 15.05.2010